sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

O Natal com Paulo Futre

Aproveitando a quadra natalícia e a ausência de competições, o ‘Paixão pelo Porto’ publica uma espécie de ‘Especial de Natal’ dedicado a Paulo Futre, um dos grandes protagonistas da fabulosa e excitante década de 80 do FC Porto.
Recordamos algumas fotos da sua passagem pelo FC Porto e alguns excertos das sempre divertidas entrevistas que concedeu à imprensa portuguesa desde que deixou os relvados.
Como se deu a mudança do Sporting para o FC Porto?
Estava a passar os piores dias da minha vida. Era um puto alegre, divertido, mas o treinador (John Toshack) já me tinha dito que não contava comigo e na imprensa começava a sair que seria emprestado à Académica. Foi quando apareceu o FC Porto e o Pintinho (Pinto da Costa) me disse: ‘Paulinho, aqui vais ser tu e mais dez’. Logo aí vi a inteligência dele.
E oferecem-te um contrato que reflectia essa ideia...
Não era só o contrato. Era a coragem. Apostaram a 100% em mim. A seguir ao Fernando Gomes era o mais bem pago. Estou agradecido para sempre ao Pinto da Costa. A ele devo tudo, porque o Sporting não acreditava em mim.
Quem se lembrou de alegares falta de condições psicológicas para romperes o contrato com o Sporting?
Acho que foi o Guilherme Aguiar, o advogado do FC Porto. Foi uma jogada genial.
Nos primeiros tempos andaste escondido no Porto?
Havia o risco de ser sequestrado pelas pessoas do Sporting, porque só seria jogador do FC Porto quando fizesse o primeiro jogo. Vivi em casa do Álvaro Braga Júnior e andava sempre com guarda-costas.
Tiveste algum problema?
Só uma ‘pintadas’ ao pé de minha casa, por ser de Lisboa. ‘Mouro, filho da mãe, não te queremos’. Com adeptos do Sporting, nada. Mas cá em baixo foi tremendo. Só pude voltar ao Montijo no Natal, seis meses depois de ter chegado ao FC Porto.
No balneário do FC Porto olharam-te de lado por seres de Lisboa?
É normal. Havia uma grande rivalidade norte-sul e era um grupo muito fechado. Chegas e vais ganhar mais do que quase todos. Conhecia alguns da Selecção e, quando fui para os cumprimentar no primeiro dia com um abraço, não fui correspondido. Se pudesse, tinha-me pirado a sete pés. Foi como na cidade: tive de os conquistar a pulso. Era odiado no Porto por alguns e em Lisboa por todos os adeptos do Sporting.
Que diferenças encontraste no FC Porto?
No Sporting havia vários líderes. O ‘Manel’ [Fernandes], o Jordão e o Oliveira. No FC Porto havia o Gomes e depois muitos sargentos, Lima Pereira, João Pinto, Jaime Magalhães, Zé Beto, Frasco. E mais abaixo muitos jogadores do norte, André, Semedo, Quim. Ali ninguém entrava, controlavam tudo. Ninguém podia falhar as regras. Todas as sextas faziam um almoço só entre eles. Não iam os de Lisboa nem os estrangeiros. E eu meti na cabeça que tinha que ir ao almoço. No ano seguinte fui convidado.
Só um ano depois?
Sim. E passei a ser sargento. Quando vi que estava com peso, consegui introduzir os estrangeiros e os outros no almoço. Almoçávamos e depois tomávamos café na Praça Velasquez. O jogador do FC Porto é ali rei. Era o único dia em que eu sacava o meu carro, o RS Turbo, só para dar ambiente. Um ano depois já me viam como um deles. Até o sotaque lá de cima já tinha. No campo tínhamos sido campeões e fora dele mostrei que seguia as regras.
Por exemplo?
Se te portasses mal, se fosses apanhado às tantas da manhã a uma quinta ou sexta-feira, era tremendo. Tudo chegava lá dentro. Estavas a ir contra o grupo.
Eram os jogadores a dar a primeira reprimenda?
Claro. ‘Ó filho da mãe’ - ali não há outra maneira de falar -, ‘estás a falhar-nos. Não nos falhes, cabrão, precisamos de ti para domingo’.
E como lidava a equipa técnica com as quebras de disciplina?
Havia o Octávio Machado, que era o polícia mau, o cão – sem ofensa porque devo muito ao Octávio –, e o polícia bom que era o professor João Mota. Se passasses para cima, ou seja, se fosses ao Artur Jorge, já era gravíssimo. E se depois fosses ao Pintinho, então era muito, muito grave.
Foste muitas vezes ao Artur Jorge?
Muitas. Mas mais em defesa do grupo, a partir do segundo ano, quando já era líder.
Saías muito à noite?
Saía. Mas quando podia. Íamos ao Swing, quando ganhávamos, mas não abusava. Se tivesse que abusar vinha ao Montijo. Normalmente não saía das regras.
Octávio Machado andava sempre de olho em ti?
Era o cão e o gato. Mas adorava-o na parte boa, e ele tinha sempre razão. Só que havia momentos em que eu disparava. Um gajo estava em casa e ele aparecia à meia-noite a tocar à campainha. ‘Que é?’. ‘Ah, já estás aí? Ok’. Uma grama a mais ou a menos de peso era logo motivo para uma discussão do outro mundo. ‘O que é que fizeste ontem, caralho... não almoçaste?’. Isto era se falhasse uma grama, se fosse um quilo era logo chamado ao Artur Jorge. Não era só comigo, era com todos. Às tantas já ia para o treino a rezar. Pesávamo-nos todos nus, nem sequer havia ali números de meter o relógio no bolso para ajudar.
As tuas maiores pegas foram sempre com Octávio?
Claro. O Octávio era o meu controlador, mas estou-lhe agradecido, porque eu era miúdo e ele fazia de polícia mau. Mas tinha também pegas com outros. Teve uma tão grande com o Madjer que saímos todos dos quartos para ver o que se passava. O João Pinto teve que se pôr no meio dos dois, isto tudo em cuecas. Estávamos proibidos de comer nos hotéis fora do Porto, com o medo que metessem qualquer coisa na comida. Mas às vezes tínhamos fome à noite e corrompíamos os empregados. Se nos apanhava, o Octávio fazia queixa do empregado e a nós dava-nos broncas. ‘Amanhã vais estar de caganeira, se meteram aí veneno como é que é?’. Era uma coisa única. Quando íamos à Selecção, estávamos proibidos de tocar nas vitaminas. Levávamos as nossas. Ele ia ver os treinos e perguntava-me quanto é que estava a pesar. ‘Já tomaste as vitaminas? Já fizeste não sei o quê?’. O que acontecia quando o Octávio tocava à campainha e não estavas em casa?Esperava-me.
E quando chegavas?
Se fosse muito tarde, às duas da manhã, dava-me uma bronca. Mas já o conhecia e não abusava. Sabia que depois de terça-feira não podia fazer isso. Mas havia dias que tinha que levar com o Artur Jorge de manhã, que era do pior. Rasgava-me todo.
Era mais duro do que o Octávio?
Porra! Se passavas lá para cima... Com o Octávio era cara a cara. Com o Artur não podias, baixavas a cabeça.
Ao Artur Jorge não respondias?
Responder o quê, fogo! Baixavas as orelhinhas e só ouvias. ‘Agora não treinas. Vai-te embora para casa, desaparece’. Aos gritos.
O Artur Jorge tem uma imagem de alguém mais sereno...
Isso foi depois do Benfica, depois do cancro. No FC Porto era o maior. Mas o maior a sério. Foi um dos maiores que tive.
Conta-nos um episódio.
Um dia fomos jogar a Coimbra e era como uma final para nós. Estávamos a lutar com o Benfica e fomos campeões só na última jornada. O que é que eu fazia muitas vezes? Vinha ao Montijo a seguir ao jogo de domingo - sempre com autorização, não podia simplesmente desaparecer - e depois só havia treino terça de manhã. Na segunda dormia da meia-noite às cinco e arrancava para o treino. Treinava e a seguir dormia a sesta.
Para o tal jogo em Coimbra, cheguei atrasado ao primeiro treino da semana. E ele não admitiu. Normalmente dava-me broncas, mas, naquele dia, cheguei lá e disse-me: ‘Vai-te embora, pá, não treinas’. Assim que me disse isso, pensei: ‘Ui, vou já para a cama, maravilha’. Havia treino à tarde e cheguei a horas, mas quando fui ao roupeiro não havia ordem para me darem o cesto. Tive que ir falar com o homem: ‘Vai-te embora, pá, não treinas’. Quarta de manhã, a mesma coisa. Quinta, igual. E eu caladinho. Sexta-feira já havia apostas entre o pessoal. Joga, não joga, é convocado, é titular, vai para o banco. E eu todo lixado.
Foste titular?
Saiu a convocatória e lá estava o meu nome. Que alívio. O treino de sábado de manhã era o mais intenso da semana, com as peladas atrás da baliza. Nos clubes por onde passei, era só ‘calma, não toca’. Ali era ao contrário. Caneleiras até cima, ai minha mãe, metiam-te o pé na cara. O jogo de amanhã? Qual quê? O jogo começava ali. Se te lesionasses, azar. Nesse sábado cheguei lá e a mesma coisa: ‘Não treinas’. No dia a seguir fui titular e fiz um jogo do outro mundo. No último segundo, com o relvado cheio de poças porque chovia torrencialmente, alguém despejou a bola para a frente. Sprintei, toquei na bola antes do Kikas, da Académica, e dei um mergulho, mas um mergulho mesmo a sério. E o árbitro, que estava no meio-campo, marcou penálti. O Kikas nem me tocou, mas só dava para perceber à segunda repetição na televisão. O FC Porto fez o 2-1 e acabou o jogo. No balneário, o Artur Jorge cumprimentou todos um a um. E passou por mim sem me tocar.
Ficaste chateado?
Ele nunca foi de me dizer mais do que ‘bom jogo’. Quando me fui despedir, antes de ir para Madrid, disse-me: ‘Sabes por que nunca te elogiei? Porque tu vais ser o melhor jogador do mundo. Se te elogiasse perdias-te. E quase acertou, fiquei com a Bola de Prata. [a Bola de Ouro de 1987 foi para Ruud Gullit].
É verdade que o FC Porto chegou a pôr uma mulher atrás de ti para te vigiar?É uma história incrível. Custa-me falar nisso.
Sentiste-te enganado?
Enganado, traído. Se antes tinha um escudo de um metro à minha volta, passou a ser de cem. Tudo o que se aproximava para mim era bicho. Não perdoei a essa mulher. Era uma amiga especial, dez anos mais velha ou mais.
Como descobriste que andava a espiar-te?
Contava-lhe tudo, tinha confiança nela, e depois o FC Porto vinha a saber. ‘Estiveste no Teenagers em São João da Madeira’. Mas como é que sabiam? Ninguém me tinha visto... Contava-lhe o que tinha feito na noite anterior. ‘Estive em casa e dei duas quecas até às três da manhã’. No outro dia já sabiam de tudo no FC Porto. Ainda pensei que tinham metido escutas lá em casa, mas cada vez desconfiava mais dela e montei-lhe uma armadilha. A partir daí passei a ter uma muralha à minha volta. Talvez até me tenha feito bem.
Nunca confrontaste o FC Porto?
Não. Nem podia. Era a minha palavra deles contra a minha.
Meses depois conheceste a futura mãe dos teus filhos. Ainda estavas na defensiva? Claro. Não só com a mãe dos meus filhos, a Isabel, mas com todas as mulheres que conheci antes de a encontrar. Conhecia-a já depois do Mundial do México, em 1986.
Disseste que quando os toureiros se retiram cortam a trança. Qual foi a maior faena?
É verdade! E até cortei o cabelo quando me retirei definitivamente, para “cortar com o passado” e começar uma nova fase, sabes? Quanto à maior faena… há dois jogos que marcam a minha vida: a final contra o Bayern e a final da Copa do Rei com o Real. Partimos aquilo tudo. Inolvidável! [sorriso]
Saíste de Viena, em 1987, pela porta grande e em ombros. Foi aí que ganhaste estatuto internacional?
Sem dúvida. A Europa passou a saber que eu existia e podia ser um caso sério no futebol.

1 comentário:

Anónimo disse...

Que saudades .....